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  • Foto do escritorBianca Bianchi

Tributação e Gênero: entenda a onerosidade do sistema tributário sobre as mulheres


Tem-se como princípio do Estado Democrático de Direito a não diferenciação de tratamento entre homens e mulheres. A Constituição Federal de 1988 consagra esse paradigma quando preceitua em seu artigo 5°, I, que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.


Essa premissa irradia efeitos para todos os ramos do direito, entre eles, as políticas tributárias, de forma que no artigo 150, II, da CF, é expressamente vedado “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.


Não obstante, em análise do PNAD 2011, que demonstra a participação percentual por decis, por raça e sexo nesse ano, verifica-se que “as mulheres negras pagam, proporcionalmente, em relação aos seus rendimentos, muito mais tributos do que os homens brancos”.


Esse fenômeno pode ser explicado por três motivos principais: (1) o formato no qual se opera o Imposto de Renda, especialmente em relação às isenções; (2) a tributação sobre o consumo, sobretudo a respeito da taxação sobre produtos considerados essencialmente femininos, o que se denomina pink tax; e (3) a divisão sexual do trabalho e a dupla jornada feminina.


No que diz respeito ao primeiro fator, cabe a análise de alguns dados apresentados pelo IPEA, em pesquisa sobre a Média Mensal das Declarações Segundo Sexo de 2016.


Havia, no referido ano, 16.081.452 (dezesseis milhões, oitenta e um mil, quatrocentos e cinquenta e dois) declarantes do Imposto de Renda do sexo masculino, para 11.915.759 (onze milhões, novecentos e quinze mil, setecentos e cinquenta e nove) declarantes do sexo feminino. De antemão, essa diferença numérica é explicada devido à inatividade ou à desigualdade de renda entre os sexos.


Seguidamente, verifica-se que a média de renda bruta total foi de R$ 8.919,00 (oito mil, novecentos e dezenove reais) por declarante no grupo dos homens, e de R$ 7.159,00 (sete mil, cento e cinquenta e nove) entre as declarantes mulheres. Em contrapartida, a alíquota efetiva sobre o grupo do sexo masculino foi de 5,56% e sobre o grupo do sexo feminino foi de 5,69%.


Extrai-se, portanto, que mesmo a renda bruta das mulheres sendo 25% menor, a alíquota efetiva das contribuintes do sexo feminino é maior do que a dos contribuintes do sexo masculino.


Outro fator que merece consideração diz respeito às isenções — os rendimentos isentos no ano de 2016 são de R$ 2.943,00 (dois mil, novecentos e quarenta e três reais) por declarante do sexo masculino, e de R$ 1.930 (mil, novecentos e trinta reais). por declarante do sexo feminino.


Segundo a legislação vigente, as despesas com educação, saúde e dependentes são dedutíveis da base de cálculo do Imposto de Renda, na modalidade “declaração completa”. Assumindo-se que a declaração completa é feita pelo cônjuge que recebe mais proventos — e os dados mostram que os homens têm, em média, remuneração 15% (quinze por cento) superior às mulheres —, tais deduções tendem a se aplicarem de forma mais direta sobre o imposto que recai às pessoas do sexo masculino.


Em tabela do IRPF sobre o número de declarantes segundo sexo e tipo de formulário, de 2014, verifica-se que os homens corresponderam a 63% (sessenta e três por cento) das declarações completas (mulheres ficaram com apenas 37%); e, mesmo na simplificada, a categoria masculina chegou a 55% (cinquenta e cinco por cento) de participação, para 45% (quarenta e cinco por cento) da parcela feminina — isso, porque no total de declarantes, os de sexo masculino representam 58% (cinquenta e oito por cento) do total, restando 42% (quarenta e dois por cento) de participação para as mulheres (MOSTAFA, s.d., pp. 15-16).


Por meio do IRPF, o Estado realiza o cofinanciamento da oferta privada de saúde, educação, previdência e serviços de cuidado remunerados. Logo, também patrocina a atividade não remunerada das mulheres ao realizar parte desse cuidado.


No entanto, ao fazer isso, recai em dois problemas: primeiro, que a dedução por tais gastos somente se dá para a modalidade de declaração completa, ou seja, os homens são a maioria dos beneficiários diretos; segundo, que produz desigualdade entre as mulheres na intersecção de gênero com classe e raça, na medida em que só a classe média e alta têm acesso a esse cofinanciamento das atividades privadas de cuidado.


Além do fato de as mulheres não figurarem como destinatárias usuais das desonerações tributárias e dos benefícios de sua tributação, seus salários, usualmente inferiores em relação ao de seus cônjuges, tendem a ser destinados à compra de bens de consumo, os quais sofrem maior incidência dos tributos.


Em decorrência da divisão sexual do trabalho, em regra, as mulheres são remuneradas em valores menores do que os homens, e, de maneira geral, recebem menos do que seus cônjuges. Dessa forma, enquanto seus companheiros se responsabilizam pelos gastos com saúde e educação — que posteriormente são dedutíveis do IRPF —, as mulheres se encarregam dos gastos correspondentes aos tributos sobre consumo, os quais são grandes geradores da regressividade tributária.


Com isso, cabe a análise do segundo fator que gera a maior onerosidade dos tributos às mulheres: a tributação sobre o consumo. O sistema tributário brasileiro é marcado pela regressividade, pois a carga tributária se concentra na tributação sobre o consumo e desconsidera a capacidade contributiva (rendimentos) de quem adquire o bem. Assim, no Brasil, quem aufere maior renda suporta menor carga fiscal, em decorrência da sua possibilidade de poupar mais e gastar menos.


Há que se somar, ainda, a questão da tributação sobre produtos essencialmente femininos, o que suscita debates internacionalmente, recebendo o nome de “pink tax”.


Do ponto de vista do ICMS, o padrão nacional para a tributação de cosméticos é a alíquota de 25% (vinte e cinco por cento), enquanto a tributação usual, via IPI, fixada pela União está entre 12% (doze por cento) a 22% (vinte e dois por cento), a depender do bem. A justificativa atribuída ao nível elevado das alíquotas está no fato de que cosméticos são bens considerados supérfluos e, como tais, devem ser mais onerados.


Muito embora se questione a essencialidade desses bens, é necessário modular o debate no contexto de imposição de padrão de comportamento e de beleza, sendo as mulheres cobradas a apresentar um certo tipo de imagem que, se ausente, é visto como sinal de descuido e inadequação, sobretudo nos ambientes profissionais. À parte, é de se espantar a disparidade de preços, ou o porquê de a tributação desses produtos ser acima da cota fixa do IPI para os demais bens.


Estudo realizado pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em 2018, comprovou que, em média, os produtos destinados ao sexo feminino são 12,3% mais caros.


Essa disparidade de preços é percebida especialmente entre produtos que apresentam versões feminina e masculina, tais como sabonetes, lâminas de depilar e desodorantes, sem que haja diferenciação substancial da qualidade da mercadoria.


Ainda mais proeminente é a alta taxação sobre produtos essencialmente femininos, a exemplo dos absorventes, cuja carga tributária é de 25% do preço do produto. Em um discurso no evento de lançamento da organização Women in Tax Brasil — WIT, Raquel Preto pontuou, neste sentido:


“Vamos falar do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI): Quem compra bombas de amamentação no país? Somos nós. O IPI é de 5%. Adaptadores de silicone para o bico do seio, muito utilizado no começo da amamentação, têm 10% de IPI. Sabonete íntimo feminino? 10% de IPI. Fraldas descartáveis? 15% de IPI. E as cuecas? 0% de IPI. Bem-vindas ao mundo da tributação desigual.”


As mulheres, ao adquirirem essas mercadorias pagam mais caro do que os homens, sem razão clara e objetiva para isso. Assim, é instaurada uma tributação regressiva, mediante impostos sobre renda e consumo, o que se verifica tanto no Brasil quanto em outros países ao redor do mundo.


O último fator a se agregar é a chamada “dupla jornada de trabalho feminina”, que se constrói a partir de estereótipos socialmente postos que naturalizam o âmbito doméstico ao sexo feminino. Dessa forma, mesmo com a concretização da inserção da mulher no mercado de trabalho, não foi eximida a responsabilidade destas para com o trabalho doméstico.


De acordo com o Pnad/IBGE, em 2015, a jornada total de horas de trabalho para homens foi de 46 horas por semana, sendo 5 destas de trabalho não remunerado; enquanto que, para mulheres, foi de 54 horas por semana, sendo 19 não remuneradas. Isso resulta em 8 horas a mais de trabalho para o grupo do sexo feminino.


Quando essa média é analisada por camadas sociais, a diferença se torna ainda mais tangível. Em faixa de renda de até um salário-mínimo no trabalho principal, os homens dedicam 10,6 horas semanais a afazeres domésticos, e as mulheres, 23,8 horas semanais (13,2 horas a mais). Já na faixa acima de oito salários mínimos, são 12,9 horas semanais para as mulheres, e 8,3 para os homens (diferença de 4,6 horas). Isto é, em todas as faixas salariais as mulheres gastam mais horas em trabalho doméstico, contudo, quanto mais baixa é a média salarial, maior a discrepância de horas destinadas aos afazeres domésticos entre homens e mulheres (Pnad/IBGE).


Apesar de não reconhecido, o trabalho não remunerado de mulheres subsidia o crescimento econômico. É estimado que se o tempo gasto pelas mulheres em cuidados não remunerados e trabalho doméstico fosse monetarizado, equivaleria a US$ 10 trilhões por ano, em torno de 13% do PIB mundial.


Outra consequência desse modelo de estruturação social se manifesta diretamente na distribuição de empregos e salários entre homens e mulheres. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2016, as mulheres receberam, em média, apenas 76,5% do salário dos homens.


Não só as mulheres se concentram em carreiras com menor remuneração, mas também tendem a ganhar menos que homens nas mesmas carreiras. Segundo o relatório da OFXAM, de 2017, a título de exemplo, médicas ganham, em média, 64% dos rendimentos de médicos e mulheres economistas ganham 61% do que recebem , em média, seus colegas homens;. Em formações de menor remuneração com grande participação feminina, como letras, mulheres ganham em média 80% do que recebem os homens.


Assim, na comparação de rendimentos entre homens e mulheres, apesar da crescente entrada da mulher no mercado de trabalho remunerado ocorrida nas últimas décadas, ainda persiste ampla desigualdade. Conforme dados de relatório da Oxfam de 2017, a renda média do homem brasileiro era de R$ 1.508,00 em 2015, enquanto a das mulheres era de R$ 938,00. Considerando somente a renda do trabalho, mulheres são mais numerosas na faixa salarial de 0 a 1,5 salário mínimo, e ocupam menos espaço a cada uma das faixas subsequentes.


Como visto, esses três fatores — a operacionalização das isenções do Imposto de Renda, a taxação sobre consumo e a dupla jornada de trabalho feminino — agem conjuntamente, atribuindo à mulher maior onerosidade tributária. Assim, resta o diagnóstico de que apesar do preceito constitucional de igualdade e de vedação de tratamento discriminatório, o sistema tributário brasileiro, na prática, ainda não consegue promover tratamento isonômico entre os contribuintes.

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