Introdução da sequência
Esse é o primeiro de três artigos sobre as cláusulas restritivas na transmissão do direito de propriedade e de que forma elas podem ser utilizadas para o planejamento sucessório. Trataremos das cláusulas de usufruto, incomunicabilidade, inalienabilidade e impenhorabilidade.
O direito de propriedade abrange os direitos de dispor, fruir/gozar e usar de um bem¹. Tendo isso em vista, é possível transigir sobre esses direitos de forma autônoma um do outro.
Ao dispor sobre o patrimônio que será transmitido aos herdeiros, o autor da herança pode limitar o exercício de certos direitos por meio da instituição de cláusulas restritivas nos instrumentos jurídicos que formalizarem as transferências.
É possível imaginar diversas hipóteses em que esses instrumentos podem ser úteis. O autor da herança pode, por exemplo, ter a vontade de garantir a subsistência dos herdeiros com estabilidade financeira ou querer proteger o patrimônio de herdeiros com capacidade reduzida para administrar os bens, por dependência química ou outros motivos de saúde, dentre outras razões.
Em vida, as cláusulas costumam ser adicionadas aos instrumentos de doação. Na transferência post mortem, por outro lado, as cláusulas deverão ser dispostas no testamento e constar do formal de partilha.
Na hipótese de instituição por testamento, eventual pretensão de se limitar o pleno exercício dos diretos de propriedade deverá observar a limitação da legítima. Isso, porque, por força do artigo 1.848 do Código Civil, entende-se que a legítima deverá ser transmitida aos herdeiros necessários sem qualquer ônus – exceto se houver justo motivo para a restrição.
Mas o que vem a ser o “justo motivo” exigido pelo art. 1.848? A legislação é pouco clara sobre esse assunto, sendo este requisito analisado caso a caso pelo judiciário. Cabe trazer os apontamentos do doutrinador Luiz Paulo Vieira de Carvalho² sobre essa exigência legal:
(...) presentemente caberá ao juiz, com base em valores éticos, morais, sociais, econômicos e jurídicos, verificar se os motivos alegados pelo testador para clausular os bens são justos. Se o magistrado entender que não são fortes o suficiente para vincular os bens da legítima, declarará nula a cláusula estipulada, reconhecendo-a como ineficaz.
Quanto às restrições instituídas em doações, há discussão na doutrina sobre a obrigatoriedade de apresentação de justa causa, tendo em vista que o artigo 1.848 dispõe expressamente apenas sobre o testamento. Há corrente doutrinária que entende não ser necessária a fundamentação na restrição imposta na transferência de direitos por doação, tendo em vista que o artigo 544 do Código Civil não impõe tal obrigação. A segunda corrente entende que, por interpretação sistemática, é necessária a justificação da restrição. Tendo em vista a falta de definição da jurisprudência sobre o tema no momento atual, é recomendável a declaração expressa e detalhada dos motivos também nessa hipótese.
Abaixo, será analisado o primeiro dos institutos objetos desta série de artigos: o usufruto.
Instituto do Usufruto
O usufruto está definido principalmente nos artigos 1.390 e 1.394 do Código Civil³ e diz respeito aos direitos de posse, uso, administração e fruição que compõem o direito de propriedade. Quando o usufruto é instituído, o direito de propriedade é repartido como descrito a seguir:
• Os direitos de posse, uso e fruição são chamados de usufruto; e
• O direito de dispor é chamado de nua propriedade.
O titular do usufruto, como vimos, é chamado de usufrutuário e o titular da nua propriedade é denominado nu-proprietário. Assim, ao ceder o usufruto de um bem, seja ele móvel ou imóvel, o usufrutuário (quem recebe o usufruto) pode se utilizar do bem como melhor o aprouver, ficando limitado apenas seu direito de dispor, o que significa transigir sua titularidade, por alienação, cessão ou doação, por exemplo.
Passemos, então, a discorrer sobre de que formas esse instituto pode ser útil para o planejamento sucessório.
Formas de utilização do usufruto
A forma mais comum de utilização do usufruto para fins sucessórios é a transmissão do bem para os herdeiros ou terceiros, em vida, por meio de doação, com cláusula de reserva de usufruto para o transmitente. Nessa situação, a nua propriedade é transmitida de imediato para a pessoa de interesse do autor da herança e o usufruto somente será transmitido quando ocorrer a morte do transmitente, ou seja, quando cumprida a condição resolutiva. Até sua morte, o autor da herança permanece usufruindo do bem, como se dele fosse.
A vantagem da utilização desse instrumento é a transmissão do patrimônio em vida de acordo com a vontade do autor da herança. No momento da morte, a propriedade do bem em questão será consolidada, conforme sua vontade, na titularidade da pessoa escolhida. Nesses casos, a doação pode ser feita tanto como antecipação de legítima⁴, quanto como disposição sobre a parte disponível⁵ da herança, bastando que o doador dispense a colação do bem para que não afete a legítima do donatário.
Há, ainda, a possibilidade de utilizar a cláusula de usufruto como estabilização da relação entre o cônjuge e os descendentes do autor da herança, instituindo o usufruto para terceiro da seguinte forma:
(i) Caso o autor da herança deseje garantir que seu cônjuge estará amparado com sua morte, poderá transmitir os bens aos herdeiros, com usufruto vitalício para o cônjuge. Desse modo, o cônjuge irá perceber os frutos do bem herdado enquanto estiver vivo, ficando sob a titularidade dos descendentes apenas a nua propriedade;
(ii) Por outro lado, caso o autor deseje que os bens sejam administrados pelos filhos, ele poderá transferir a titularidade dos bens para o cônjuge com cláusula de usufruto para seus descendentes.
Fica evidente que a utilização do instrumento poderá variar de acordo com as características das relações familiares, a vontade do autor da herança e o patrimônio. É de extrema importância, então, que se realize um planejamento personalizado para a utilização do usufruto.
Instrumento para formalização
Como adiantado, a instituição de usufruto para fins sucessórios se dá por meio dos instrumentos de doação ou testamento.
Cabe notar que o usufruto sobre bens imóveis somente se constitui mediante o registro do direito na matrícula do imóvel, junto ao Cartório de Registro de Imóveis, de acordo com o que determina o artigo 1.391 do Código Civil. Assim, no caso de doação, o usufruto será constituído com o registro da doação e, no caso de testamento, com o registro da partilha de bens.
Custos Tributários
A transmissão de propriedade por meio de doação e em decorrência do falecimento gera a obrigação de recolhimento do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doações, o chamado ITCMD, ITCD ou ITD, a depender do estado federativo.
Esse imposto tem como base de cálculo o valor dos bens que estão sendo transmitidos⁶, tendo em vista que, usualmente, os direitos de usufruto e da nua propriedade são alienados em conjunto. Ocorre que, em operações em que esses sejam transmitidos em momentos diversos, as legislações estaduais preveem diferimento no recolhimento — estabelecendo que apenas uma fração do imposto será pago no momento da transmissão do usufruto e outra no da nua propriedade.
Por isso, as legislações estaduais normalmente preveem que a base de cálculo para transmissão da nua propriedade e do usufruto equivalem, cada uma, a uma fração do valor do bem. Tendo isso em vista, preparamos uma tabela com as frações utilizadas nas legislações estaduais de todo o país.
Estado | Base de Cálculo (fração sobre o valor do bem do qual será transmitida a nua propriedade ou o usufruto) | Fonte Normativa |
Distrito Federal | · 30% nua propriedade · 70% usufruto | Decreto Distrital n.º 34.982/2013 |
São Paulo | · 2/3 nua propriedade · 1/3 usufruto | Lei Estadual n.º 10.705/2000 |
Rio de Janeiro | · 50% nua propriedade · 50% usufruto | Lei Estadual n.º 7.174/2015 |
Minas Gerais | · 100% nua propriedade · 1/3 usufruto | Lei Estadual n.º 14.941/2003 |
Goiás | · 50% nua propriedade · 50% usufruto[7] | Lei Estadual n.º 11.651/1991 |
Mato Grosso | · 70% nua propriedade · 70% usufruto | Lei Estadual n.º 7.850/2002 |
Mato Grosso do Sul | · 2/3 nua propriedade · 1/3 usufruto | Lei Estadual n.º 1.810/1997 |
Espírito Santo | · 50% nua propriedade · 50% usufruto | Lei Estadual n.º 10.011/2013 |
Paraná | · 50% nua propriedade · 50% usufruto | Lei Estadual n.º 18.573/2015 |
Santa Catarina | · 50% nua propriedade · 50% usufruto | Lei Estadual n.º 13.136/2004 |
Rio Grande do Sul | · Valor individualizado da nua propriedade e do usufruto, conforme avaliação da Fazenda Pública Estadual | Lei Estadual n.º 8.821/1989 |
Bahia | · 50% nua propriedade · 50% usufruto[8] | Decreto Estadual n.º 2.487/1989 |
Pernambuco | · 2/3 nua propriedade · 1/3 usufruto | Lei Estadual n.º 13.974/2009 |
Ceará | · 2/3 nua propriedade · 1/3 usufruto | Lei Estadual n.º 15.812/2015 |
Paraíba | · 50% nua propriedade[9] · 50% usufruto | Lei Estadual n.º 5.123/1989 |
Alagoas | · 100% nua propriedade · Valor do usufruto de forma individualizada | Decreto Estadual n.º 10.306/2011 |
Maranhão | · 100% nua propriedade · 50% usufruto | Lei Estadual n.º 7.799/2002 |
Piauí | · 100% consolidação da nua propriedade · 5% por ano, limitado a 100%, usufruto de prazo determinado · 100% usufruto de prazo indeterminado | Lei Estadual n.º 4.261/1989 |
Sergipe | · 100% nua propriedade · 100% usufruto | Lei Estadual n.º 7.724/2013 |
Rio Grande do Norte | · Valor individualizado da nua propriedade e do usufruto, conforme avaliação da Fazenda Pública Estadual | Lei Estadual n.º 5.887/1989 |
Amazonas | · 50% nua propriedade · 50% usufruto | Lei Estadual n.º 19/1997 |
Pará | · 1/3 usufruto | Lei Estadual n.º .529/1989 |
Roraima | · 100% nua propriedade · 100% usufruto | Lei Estadual n.º 59/1993 |
Rondônia | · 50% nua propriedade · 50% usufruto | Lei Estadual n,º 959/2000 |
Tocantins | · 50% nua propriedade · 50% usufruto | Lei Estadual n.º 1.287/2001 |
Amapá | · 30% nua propriedade · 70% usufruto | Decreto Estadual n.º 3.601/2000 |
Acre | · 2/3 nua propriedade · 1/3 usufruto[10] | Lei Estadual n.º 373/2003 |
É importante ressaltar, ainda, que o usufrutuário é obrigado a declarar os frutos percebidos do bem − como alugueres, arrendamento, lucros da exploração − em sua Declaração de Imposto de Renda, recolhendo o tributo quando devido.
Conclusão
Diante do exposto, melhor compreender o que é o instituto do usufruto e de que forma ele funciona pode se demonstrar muito útil para a realização de um bom planejamento sucessório, desde que usado em observância às limitações legais, especialmente de proteção da legítima e outras previsões legais. Logo, é essencial o acompanhamento de um profissional especializado na matéria para evitar nulidades nos atos sucessórios.
Os próximos artigos da série tratarão de incomunicabilidade, inalienabilidade e impenhorabilidade. Inscreva-se em nossa newsletter para ser notificado quando estiverem disponíveis.
[1]Código Civil
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
[2]DE, CARVALHO, Luiz Paulo V. Direito das Sucessões. São Paulo: Grupo GEN, 2019.
[3] Art. 1.390. O usufruto pode recair em um ou mais bens, móveis ou imóveis, em um patrimônio inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e utilidades.
Art. 1.394. O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos.
[4] Esse e outros conceitos do Direito das Sucessões são elucidados em artigo anterior produzido para o nosso site, que pode ser acessado clicando aqui.
[5] Esse e outros conceitos do Direito das Sucessões são elucidados em artigo anterior produzido para o nosso site, que pode ser acessado clicando aqui.
[6] A depender da legislação estadual incidente, o parâmetro para a base de cálculo poderá ser o valor venal do bem, o valor com que o bem foi negociado ou o valor de avaliação da Fazenda Pública Estadual.
[7] A fração pode variar proporcionalmente a depender do tempo de usufruto, caso seja inferior a 5 (cinco) anos.
[8] No usufruto temporário, a base de cálculo será correspondente a 1/20 (um vinte avos) do valor venal do imóvel usufruído por ano de vigência da instituição, até o limite de 10/20 (dez vinte avos).
[9] Na doação da nua-propriedade para terceiros, a base de cálculo será igual a 100% (cem por cento) do valor da mercadoria ou do bem.
[10] 1/3 na extinção do usufruto, quando o nu-proprietário não tenha sido o instituidor.
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